Uma espécie de psicose

Fotograma de Yvone Kane, de Margarida Cardoso



A semana passada vi Ivone Kane, de Margarida Cardoso, na RTP2. Margarida Cardoso filma bem, tem aqui um luxuoso argumento e um naipe de atores excecional. Alguns dos melhores filmes portugueses da última década são sobre África e ainda agora comecámos. Se isto não fosse quase uma heresia, atrever-me-ia a afirmar que há bom cinema em Portugal. 
Vejo e leio muito sobre África e a relação passada e presente com o território. Alguns assuntos deixo passar, porque me cansa. A minha vida seria mais leve se não carregasse comigo parte da história política da descolonização. Estão sempre a convidar-me para falar destes assuntos, e já me ocorreu responder, "desculpe, não sei do que fala, nasci em Almada, nunca saí daqui". 
Nunca vejo filmes como Yvone Kane vendo apenas a obra. Tenho de estar atenta aos décors. Tenho de procurar reconhecer tudo. Lugares. Formas de falar. Traços físicos que me permitam ver, naqueles, os meus africanos. Os meus. Leia-se este pronome possessivo como se entender. Muito depois de eu morrer, e isso levará tempo, o silêncio das memórias estará esvaziado deste inocente e involuntário enunciado. 
Menciono Yvone Kane, porque, enquanto via o filme, rodado em alguns locais da cidade do Maputo e arredores, pensava que deveria regressar. Para visitar. Há mercados na beira da estrada. Bairros de casas pobres. Reconheço aquele caos populacional e habitacional. As cores, a luz, a aparente desarrumação. Respiro fundo, aliviada, revendo a minha casa. É ali. Respiro fundo, mesmo. Aquele é o lugar proibido onde abri os olhos e registei na mente as primeiras sensações. O meu modelo de mundo. Um caos. Pensei que visitar Maputo será perigoso, porque tendemos a querer ficar na nossa casa. Tenho medo que me aconteça. Não sou inocente. Não sou bem vinda na minha casa, sei. 
Falei disto na grupanálise e afirmei que sou um terceiro lugar, um não lugar, aquele "qualquer coisa de intermédio" que não é nada certo. O caos. Fiquei com a ideia que alguém terá enunciado a ideia de que eu própria sou um caos. Ficou-me na cabeça. Não sou inocente. Em psicanálise ninguém enuncia nada por nós. Julgo-me, portanto, um caos. Sim, sim, vendo de fora, ou de dentro, um caos, disfarçado, é certo, mas inegável. 
Vinha para casa de carro, pensando nisto, e ocorreu-me aquela verbalização bíblica do Genésis, de que no princípio era o caos. Pois bem, no princípio sou eu. Estou lá. Mas no princípio e no fim está sempre Deus. E eu. Se calhar, até sou Deus. Seja como for, está na hora de Deus tomar o Xanax e ir dormir, para ver se começa a levantar-se mais cedo. Deus culpa-se.

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