As criancinhas são uma benção

Madrid, Museu de Escultura Contemporânea ao Ar livre, 2014


Eczemas fedorentos, tuberculose cavernosa, fome e pulguedo sem fundo eram as grandes doenças das criancinhas antes do 25 de Abril. 
Depois veio a Nova Era.
Nos anos 70, as crianças nasciam com problemas de ortopedia e tinham de usar umas botas especiais com geometria de arames.
Nos anos 80, a ortopedia começou a esmorecer e apareceram as otites, sinusites e alergias. Foi quando as minhas colegas começaram a dizer, nas salas de professores, "o meu mais novo fez uma otite", sintaxe do verbo fazer que ainda hoje me é muito cara. Foi a era da otorrinolaringologia.
Nos 90, manteve-se esta, acumulando com a alergologia, e apareceu um novo problema, que ninguém esperaria que o fosse: a sobredotação. Saltavam crianças sobredotadas de tudo quanto era esquina. Abria-se a porta de um prédio com seis apartamentos de duas assoalhadas, nas Paivas, e saía uma dúzia de sobredotados.  Uma pessoa até tinha medo de chegar às aulas e de já ter um sobredotado a ocupar-lhe o lugar. Foram anos muito difíceis.
Hoje em dia, a especialidade médica é a psiquiatria para os hiperativos, déficits de atenção, Aspergers, autistas e outras perturbações correlacionadas. 
Constato, apenas. 
Gostaria de compreender este movimento "migratório" das perturbações infantis e juvenis, e até de estabelecer alguma relação com o estado socio-económico do mundo, se possível, mas é melhor não enveredar por aí, e agradecer a Deus por ser do tempo em que apenas nos apareciam furúnculos, aftas, sarampo, partíamos a cabeça de seis em seis meses, esfolávamos cotovelos, pernas e joelhos, e, sobretudo, não tínhamos querer. É desse tempo que eu sou, do "tu não tens querer". Ouvi esta expressão muito mais vezes do que o All you need is Love, dos Beatles, e ainda bem.
A minha mãe, assim que me olhou para a cara, tirou-me logo o raio X do desejo. Tem sido o meu grande padecimento: querer muito, querer tudo, querer demais. 

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