O dia em que compreendi os portugueses

  Josef Koudelka, Estremadura, Nazaré, Portugal, 1976, Magnum Photos

Perdoem-me a imodéstia, mas acho que vim à terra com uma missão específica: compreender e listar as idiossincrasias do povo português. Listar faz-se, compreender vai-se fazendo, mas aceitar é impossível. 
Durante muitos anos pensei que os portugueses eram pobres, atrasados, mas que, apesar de tudo, tinham feito o 25 de Abril, e via dignidade na revolta dos pobres. Depois percebi que Abril tinha sido obra exclusivamente militar, e que o português só saiu à rua, com a mulher e a filharada, ao compreender que nenhum tiro perdido lhe atravessaria as virilhas.
Mas perceber, perceber, só me aconteceu há meia dúzia de anos, no auge da luta dos professores contra as medidas do governo Sócrates/Maria de Lurdes no que respeitava à avaliação da classe. Trabalhava eu numa escola particularmente conservadora, com uma abjeta direção subserviente ao poder, mas houve a coragem para se realizar um plenário no qual ficou decidido que ninguém entregaria os objetivos no dia seguinte. Os objetivos implicavam a nossa aceitação do processo de avaliação contra o qual vínhamos lutando, o que na prática consistia apenas em fazer copy/paste dos que haviam sido definidos pelo conselho pedagógico, assinando por baixo, e entregando na secretaria. Estes plenários realizaram-se em todas as escolas, e o seu objetivo era a união de todos; a não entrega dos objetivos resultaria numa manifestação de rejeição impossível de ignorar pelo poder. No plenário foi possível obter um grande consenso. No final, fiz as contas ao produto da reunião, e calculei que, em cerca de 80 professores, havia apenas uma dezena de indecisos. Regressei a casa feliz. Batalha ganha. Os indecisos, provavelmente, encorajados pelos outros, perderiam o medo e acabariam por não entregar os objetivos.
No dia seguinte, chegando à escola no turno da tarde, alguém vem ao meu encontro dizendo que já todos os tinham entregado, dando como desculpa que falaram com a família e que não podiam pôr em causa a sobrevivência, a mudança de escalão e a estagnação na carreira, porque tinham os filhos, a hipoteca, o diabo a sete. Fiquei paralisada de indignação. Ao final do dia, último dia do prazo, apenas meia dúzia professores, nos quais eu me incluía, havia mantido o compromisso da véspera. Claro que este cenário se repetiu na maior parte das escolas, inclusive naquela em que hoje me encontro. As promessas da véspera não correspondem aos atos do dia seguinte. Os portugueses não acreditam na união, na força do grupo e muito menos lhes entra na cabeça que o poder são eles próprios, unidos, e que contra isso nada existe de mais forte num estado democrático. Os portugueses têm medo. Não acreditam na democracia. Desconfiam. Fazem ou não fazem à cautela, não por convicção. Escondem-se atrás dos outros. Enterram a cabeça na areia. Resumindo, isto não é gente, são sombras esperando por outra sombra que passe, para apanharem a boleia e passarem despercebidos.
Dizia ontem Angela Merckel, em visita a Portugal, que os portugueses são um povo orgulhoso. Santa mentira diplomática! Os alemães podem ser orgulhosos, os americanos, os espanhóis... Os portugueses são cobardes! Os portugueses são mesquinhos! Os portugueses mordem nas costas e na cara sorriem! Os portugueses são um subpovo que não merece a terra que os seus antepassados conquistaram! Eu só não tenho vergonha de ser portuguesa porque não sei ser mais nada.



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